Técnicos do Ministério da Saúde recomendaram que o governo de Sergipe seja obrigado a devolver quase 35 milhões de reais ao Fundo Nacional de Saúde por não saber explicar para onde foram os recursos destinados à manutenção do SAMU, o Serviço de Atendimento em Unidade Móvel.
Esse montante considera os repasses milionários feitos pela União entre janeiro de 2022 – quando o estado era governado por Belivaldo Chagas (Podemos) – e setembro de 2023, já sob a gestão de Fábio Mitidieri (PSD). O valor ainda precisa ser atualizado com juros e correção monetária.
O pedido é resultado de uma auditoria conduzida pelo SUS, finalizada no final do ano passado e obtida por Carta Capital. Os resultados dessa inspeção foram encaminhados em janeiro à Secretaria de Atenção Especializada em Saúde, órgão responsável pela avaliação dos programas de alcance nacional.
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Saúde de Sergipe afirmou ter enviado os documentos solicitados ainda em dezembro- notas fiscais, ordens bancárias e atestados de recebimento separados por fontes de recursos – e pontuou que o valor indicado na auditoria foi “executado e comprovado de forma detalhada”.
Não disponibilizou, porém, o material encaminhado ao Ministério. “Naquele momento, não foi possível fornecer os extratos de forma individualizada, uma vez que os recursos financeiros são depositados em uma conta única, de acordo com o que determina a Portaria nº 3992/17 do Ministério da Saúde”, explicou a pasta.
O pente-fino na gestão do SAMU em Sergipe começou em agosto passado. Trata-se de um procedimento padrão, elencado como prioridade pela Auditoria Geral do Sistema Único de Saúde (AudSUS) para o ano de 2023, e que levou em conta o volume de recursos recebidos pelo Estado.
Desde então, técnicos do DENASUS passaram a analisar documentos relacionados ao programa federal e solicitado informações à secretaria, como relatórios de despesas, extratos bancários e notas fiscais, com o objetivo de comprovar a correta aplicação dos recursos federais.
Mas, de acordo com a auditoria, esse processo foi limitado porque a gestão estadual não disponibilizou o material necessário à realização do trabalho – atitude que, sustentam os auditores, teria “limitado a atuação da equipe” e comprometido “qualitativamente” o resultado da inspeção.
Dados disponíveis no portal do Fundo Nacional de Saúde indicam que Sergipe recebeu cerca de 34,7 milhões no período analisado pelos técnicos. Foram pouco mais de 20 milhões transferidos durante todo o ano de 2022 e outros 14.582 milhões recebidos até setembro de 2023.
Depois que o dinheiro cai na conta, cabe ao estado administrá-lo e prestar contas sobre como ele foi gasto.
Em um ofício enviado ao DENASUS em 13 de dezembro, a secretaria tentou explicar o motivo pelo qual não havia enviado os materiais solicitados. No documento, afirmou ser impossível “identificar repasses específicos direcionados ao SAMU”. Isso se deve ao fato de a pasta operar com uma conta única para a execução de todos os pagamentos da rede estadual.
“Como resultado, não podemos fornecer extratos bancários ou relatórios contábeis específicos direcionados ao SAMU, uma vez que todos os documentos são emitidos com informações gerais”, diz trecho da justificativa. “Queremos assegurar que utilizamos todos os meios possíveis para filtrar as informações desejadas, mas até o momento, sem sucesso”.
Para os auditores do Ministério, esse método de gerir os recursos públicos
“evidencia a fragilidade da Secretaria Estadual de Saúde de Sergipe no controle da aplicação dos recursos” destinados ao programa. Diante disso, reafirmaram que o valor recebido pelo Estado deverá ser devolvido aos cofres públicos.
Especialistas consultados pela reportagem avaliam que a justificativa apresentada pelos gestores sergipanos é pouco comum e contraria princípios básicos de integridade e transparência na administração pública.
Marina Atoji, diretora de programas na ONG Transparência Brasil, destaca que a desorganização nas despesas do Estado acaba por prejudicar os cidadãos que utilizam o serviço diariamente, uma vez que futuros repasses para o SAMU podem ser suspensos ou cancelados.
“A própria administração estadual acaba tendo pouco controle sobre o que gasta e com o quê, abrindo enormes oportunidades para desvios e desperdício de dinheiro público”, avalia. “Com esse sistema, a transparência pública e a prestação de contas ficam bastante comprometidos, já que o Estado não consegue dizer precisamente como executa suas despesas”.
“Ao não individualizar os pagamentos e registrar as respectivas despesas pormenorizadamente, além de violação de dever constitucional, lo governo estadual] dificulta controle social, interno e externo da administração pública”, acrescenta Márcio Staffen, doutor em Direito Público e professor da Universidade do Vale do Itajaí (SC).
A cobrança do valor indicado, determina um acórdão do Tribunal de Contas da União, deve ser feita diretamente aos gestores supostamente responsáveis pelo dano constatado na auditoria. Ou seja, à enfermeira Mércia Feitosa – que esteve à frente na secretaria entre maio de 2020 e dezembro de 2022 – e ao médico Walter Pinheiro, atual mandachuva da pasta.
Segundo o entendimento do TCU, o gestor tem a obrigação de devolver os recursos porque “nessas situações, não há evidências de que eles tenham sido aplicados em prol de alguma finalidade pública”. À reportagem, Feitosa afirmou não ter recebido nenhuma notificação a respeito da auditoria.
Até o momento, o Ministério da Saúde não deu início ao processo de notificação dos gestores estaduais, apurou CartaCapital com técnicos da pasta. O rito a ser seguido envolve o envio de um ofício com informações sobre a devolução do dinheiro – não há prazo para que isso aconteça. Na sequência, os gestores ainda podem apresentar suas defesas.
Criado há duas décadas, o SAMU é um serviço de atendimento de urgência que funciona 24 horas e integra o rol de Ações e Serviços Públicos de Saúde. No estado, possui uma central de regulação em Aracaju e bases descentralizadas em pelo menos trinta municípios sergipanos.
O financiamento acontece de forma compartilhada – a União entra com 50% dos investimentos, Estados e municípios ficam com 25% cada. Até 2017, os repasses eram realizados através de seis blocos de financiamentos e deviam ser aplicados apenas na sua respectiva área (atenção básica, assistência farmacêutica, vigilância em saúde, entre outras).
Uma portaria editada no governo Michel Temer (MDB) naquele ano, porém, condensou esses blocos e os transformou em dois: custeio e investimento – o que flexibilizou o uso das verbas nos estados. À época, a medida foi duramente criticada por especialistas em gestão pública, para os quais as mudanças poderiam comprometer a execução dos serviços na ponta.
Fonte: Wendal Carmo/ Carta Capital.